NINGUÉM FAZ UMA TRAVESSIA SOZINHO
Terreiros, espaços de sociabilidade e cultura de matriz negro-africana, apresentam-se, ainda nos dias de hoje, como um polo de resistência cultural e simbólica.
Tradicionalmente, eles demarcaram uma posição relevante para a diáspora negra e, consequentemente, para a sociedade brasileira e, por que não, para o constructo imagético criado a seu respeito.
Do registro documental às poéticas, as expressões visuais deste corpo cultural encontram ressonância em vários aspectos marcantes para esta cultura. Aqui, eles recebem o seguinte recorte conceitual:
A encruzilhada, em Oríta – território de passagem e permanência. O alimento, em Ajeum – território das materialidades e das oferendas. O corpo, em Ara – o território próprio que restou aos negros africanos que fizeram, forçosamente, a travessia para longo período de escravidão neste Brasil. O chamado em Rum rumpi lé – território da celebração, da ginga, da festa. O sagrado e o profano, em Imolé – território das relações míticas com a natureza e os elementos que a circundam. E, em Saravá, uma homenagem aos fotógrafos Pierre Verger, Mario Cravo Neto e José Medeiros que, cada um a seu modo, marcaram em seus trabalhos entradas significativas nestes espaços ainda vistos com preconceito e temor.
Todos os artistas desta mostra nos contam sobre seus próprios corpos-território e produzem conhecimentos capazes de revelar a materialidade das experiências negras, convertendo sua arte em ferramenta fundamental para uma reflexão crítica sobre a cultura brasileira.
Este repertório visual que registra, documenta e cria, muitas vezes de forma autônoma, o ambiente, o cotidiano, as festas e, não raro, os rituais tidos como secretos nos terreiros das religiões de origem africana, falam sobre um Brasil com olhos cheios de axé, ou seja, de energia vital.
E, com eles, navego. Afinal, ninguém, absolutamente ninguém, faz uma travessia sozinho.
Denise Camargo,
inverno de 2014